Comecei a ler quando tinha 5 anos; ainda antes de ir para a escola alguém me abriu as portas das letras e dos números antes sequer de eu perceber bem para quê precisava dessas coisas todas na cabeça; nunca lhe agradeci como devia ser e agora apercebo-me disso.
Era uma miúda solitária, primeira filha, neta, sobrinha, os cuidados redobravam-se em atenções de que nem sempre se precisa; toda a gente tinha medo que me partisse e por isso nunca me deixavam brincar na rua, nem subir às árvores, a verdade é que os joelhos se esfolam na mesma e as cabeças racham-se, seja em casa, seja na rua; mas a solidão, este sentimento que só mais tarde percebi que se chamava assim, fazia-me viver num mundo de pessoas e sítios imaginados e inventados por mim, e que serviam para calar aquela moideira interior que ainda não tinha nome e os risos dos outros putos que passavam lá fora em correria. Mas a verdade é que a calavam pouco...
Mas isto antes das letras... quando comecei a ler, sem ser só o bê-à-bá, quando as palavras se começaram a juntar em frases, que por sua vez se juntam em parágrafos e capítulos e livros e ideias e sonhos e caminhos e verdades imaginadas que são verdades do mundo; aí a moideira, a rai's parta da moideira, foi à sua vida, provavelmente para atormentar outras e outros, que esta moideira é uma sacana que não desiste!
Aí comecei a devorar livros como quem come bolos e morangos... Ainda bem que não são coisa de engordar ou ficava obesa! Ai, ai, ai, que coisa que eu tinha descoberto, para entrar no paraíso bastava abrir a capa e mergulhar por ele adentro, era a Esther Williams, nadava como uma verdadeira sereia entre as palavras!
Nos livros descobri amigos, viajei, insultei, amei, fui terrivelmente infeliz e soberbamente ditosa, fui sacana e Madre Teresa, descobri o Homem e descobri-me a mim; algumas coisas percebi desde logo, outras percebo agora e tantas ainda vou perceber com estas pequenas criaturas que em tantos formatos e cheiros (porque cada livro tem um cheiro) me enchem a vida e as carteiras (e muitas vezes me dão cabo das costas, porque alguns deles são pesados como o rai's parta); preenchi a vida e deixei que ela me preenchesse!
Os livros tornaram-se uma paixão, companheiros inseparáveis, objectos que me definem e que por mim são definidos, demónios que às vezes te atormentam em deliciosos infernos, anjos que te iluminam por dentro, humanos que te abraçam, desiludem, carregam, apoquentam, abandonam, te fazem melhor ou pior pessoa, consoante o lado para que estão virados, se para o nascer ou para o pôr-do-sol.
No caminho da vida, graças ao senhor, ou à senhora, ou a Ganesha, sei lá eu bem, descobri, encontrei e amo, pessoas a sério, amigos, companheiros, "palhaços" que comigo apalhaçam e fazem da vida coisa séria; não me deixei ficar só pelas páginas inventadas da vida, escrevi e escrevo a cada dia parágrafos no meu livro dos dias a cada passo que dou nas estradas; escrita maravilhosa esta em que nunca sabes o que a caneta do destino vai sublinhar a seguir, e sou feliz onde estou, com quem estou e com quem sou, com a perfeita noção de que só nos livros podes espreitar a página final (coisa que nunca faço; custa-me sempre tanto chegar ao fim de um livro, que me enche as medidas, que espreitar as páginas finais não era matá-lo a ele, mas sim a mim).
No entanto, os meus fieis companheiros de capa e contracapa continuam a encher-me as prateleiras e a cabeça de "doçuras", sem um livro para ler sinto-me nua, manca e zarolha; seria impossível desistir desta relação de silêncios e intimidade que partilho com alguns dos livros que leio, daquela sensação de perda quando as páginas se fecham às palavras e o livro se acaba; desistir das ânsias que acontecem a cada virar de página seria desistir das ânsias de viver; desistir das gargalhadas sonoras que às vezes me provocam e das quais só nós dois sabemos a razão seria mesmo desistir das gargalhadas que dou na vida "real".
Abençoados sejam os senhores e as senhoras que sabem pôr a palavra falada em escrita, abençoadas as criaturas que inventaram as letras em papel, esse veículo maravilhoso onde se expressam as almas humanas; abençoado o senhor Guttenberg, que ainda por cima ajudou a acabar com a Idade das Trevas; abençoadas as bibliotecas; abençoado seja também o vinho tinto que tão bem acompanha uma leitura; abençoados sejam os livros, Ámen!!!