Dois copos de vinho Rosé enquanto se cozinha, daquele que sobe pela cabeça e desce até aos pés que começam a aquecer, outros tantos de tinto maroto que fazem cocegas onde o Rosé não chegou, um terceiro que se avizinha e que se bebe já de prato vazio.
A música faz-se em vinyl, escolhido ao acaso, por sorte, o primeiro que te sair, ouve-se de Vangelis a Bob Dylan a Sinéad O'Connor a Supertramp, esquizofrenia musical que acompanha o vinho e o cheiro a ervas estranhas no ar... a noite desliza entre risos súbitos e pequenos silêncios, nem confortáveis nem desconfortáveis, estão por ali como convidados extras da noite.
A conversa já meia trôpega oscila entre coisas semi-sérias (que nunca duram muito) e pesca de atuns, atuns/cinzeiros:
1- Mas tu usas atuns como cinzeiros?
2- Atuns em cinzeiro?
1- Percebi que tinhas dito para pescar atuns para usar como cinzeiro...
2- Mas tu tens cinzeiros desse tamanho?
1- O quê?
3- Vocês estão a ter uma conversa doida!!! Atuns e cinzeiros?
1 e 2- De que é que estás a falar rapariga?
Só com vinho não se pode ter conversas destas e se não participas no ritual das estranhas ervas queimadas ficas automaticamente incapacitado de perceber de que atuns e de que cinzeiros se fala... tudo bem, é como na escola primária, uns brincam à apanhada, outros ao elástico... vou brincar com o amigo que também se fica pelo vinho, os outros também não nos percebem e... tudo bem!
Fumo mais um cigarro até à sobremesa aparecer na mesa, fumo outro depois dela desaparecer da mesa, mais um com o café, e vai-se "andando" assim pela noite, com uma boa sensação, mas que não chega, o corpo está sempre lá, a sentir o vinho, o fumo que se inspira e respira, a ouvir o que se diz, a boca participa, mas há um pedaço de alma que às vezes foge para rua lá fora, que às vezes foge dali e se refugia num sorriso que não é para aquela mesa chamado porque não pertence ali.
Alguém se levanta, novo vinyl surpresa, olho em frente, espreito entre as cabeças a tentar perceber qual vai ser o tamanho da surpresa musical, a meio caminho os olhos esbarram com a lombada de um livro, amarelo, as letras vermelhas (ou parecem neste lusco-fusco em que se mergulhou a sala), lê-se: Fast Forward. Fico ali, releio as palavras, traduzo-as: avançar rápido, volto a pô-las como estavam: fast forward...
E eu penso: - É isso mesmo... - E eu sinto: - É isso mesmo!
O problema desta noite, sem ser um problema da noite, ou do espaço, ou do jantar, ou das pessoas, porque é meu, é que eu quero fazer um avançar rápido, de hoje para amanhã, de amanhã para depois e de depois para o outro depois, quero estar em menos de meia-hora já daqui a uns dias, quero avançar rápido para onde já está aquele meu sorriso que não pertence aqui.
Quero fazer um fast forward para o momento em que, numa cidade desconhecida para nós, vamos estar a dançar ao som da voz do senhor M. Ward, que rouco nos diz para cairmos um no outro...
Fecho um bocadinho os olhos e desejo isso com força a ver se funciona, penso pensamentos felizes como o Peter Pan, abro os olhos a ver se resultou... mas, falta-me o pó mágico para fazer voar o tempo ou o corpo... a sala ainda é a mesma, as pessoas também. Há uma leve desilusão em mim... bebo mais um gole de vinho, mais um cigarro, insspiro a ânsia, a vontade de ti e expiro o fumo.
Sacudo a desilusão para fora e penso: -Hoje é hoje e não pode ser amanhã, mas não faz mal, não importa, porque vai chegar o dia em que não vou precisar do fast forward, vai chegar o dia em que o meu sorriso vai estar sempre onde quer estar.